quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Ó dúvida!

Quando a lagarta vira borboleta é uma maravilha. Mas e quando a borboleta insiste em querer ser lagarta de volta? Como é que faz?

A vida à prova

Mano, esse cara sempre colava no bar que era meu quintal, sabe? Aquele que você mora também? A duas quadras de casa, menos. Ninguém, parece, sabia muito bem sobre ele. Uns falavam que ele tinha sofrido um acidente há uns anos e tinha uma chapa de metal na cabeça, que tinha se endireitado depois disso, mas que já tinha passado pela "casinha". Eu entendi a gíria quando olhei para os braços dele a primeira vez e vi aquelas tatuagens feitas com tinta de caneta Bic, toscas. Assassinato.

Tem gente que pula de paraquedas, outros brigam com o namorado, outros traem, em busca de emoção na vida. Eu vou pro bar e converso com os mais malucos que achar. Minha emoção é sair ileso da noite, o que não significa obviamente intacto. Muito pelo contrário. É provar que aquilo passa por mim, eu observo, aprendo, me sinto vivo, mas não me atinge. Como se assim pudesse ser invisível, ou super flexível, conversando com as pessoas mais diversas, sem fazer parte de nenhum grupo específico. Um exercício de ser camaleão.

Esse cara sempre vinha conversar conosco, minha namorada e eu, e parece que a gente definitivamente atraía os piores "exus" ao redor. Aquele era peixe grande, dava pra sacar, só não sabíamos bem por que. Um dia ele trocou uma ideia estranha com a gente, mas foi simpático, e pediu pra eu ensinar o filho dele a tocar violão. Ele que pagaria.

Dia seguinte chego em casa e sou apresentado ao menino, com seus 16 anos, meio tímido, mas parecia muito atento e esforçado. De fato, parecia que tinha algum talento. Melhor assim, pensei...

E assim se passaram algumas semanas de aula e afeição entre aluno e professor. Um dia chego e lá estão pai e filho, pro jantar. Um pouco de desconforto, devo admitir. Chegar tão próximo assim do perigo não me parecia a coisa mais sábia a se fazer, mas estava feito, já era. E lá estava eu ouvindo histórias de crimes, de cadeia e outras mais, depois de o filho ir embora.

O cara era tão gente fina que ia levar a gente na boca pra comprar um pó bom ali da região. E lá fomos nós pra um beco escuro, onde fomos cercados por caras armados, desconfiados, mas que sim, nos venderam um "papel do bom". E assim viramos de fato "irmãos".

Na noite seguinte estávamos nós naquele mesmo bar, na verdade uma padaria 24h numa região totalmente suspeita do centro de São Paulo. Lá fomos nós em busca de mais alguma estranhice para animar nossas noites alcoólatras? E eis que chega esse outro cara, meio que da nossa idade, mas super agitado e com um olhar de pânico. A gente tava meio que de boa nessa noite, tomando duas pra ir dormir, numa paz, observando uns bolivianos completamente bêbados do outro lado do balcão. Noite silenciosa lá fora e meio morta ali dentro também, até então.

A gente não conseguia entender se ele estava muito louco de pó, crack ou sei lá o que. Ou se ele era assim mesmo, insano. Mas ele se sentou ao nosso lado e começou a beber e falar coisas meio desconexas, sem perguntar nada, uma enxurrada de palavras, histórias da vida dele parecia, e no meio, de repente, a frase "eu acho que eu matei ele, mas nem voltei lá, não sei", "estou com medo", e mais vários goles... Os meus olhos deviam estar quase saltando da órbita e meu coração do peito. Eu olhava pra namorada sem saber o que fazer, pois vi que ela também estava com medo de ter qualquer reação indevida. Perguntei se isso tinha sido hoje? É, agora mesmo... Parece que ele tinha acabado de matar o irmão com um taco de beisebol.

Ele foi nos fazendo ir com ele até a casa dele, dizia que ali do lado, que a gente era legal e que devia conhecer alguém ou algo que estava lá dentro, que ele não queria ficar sozinho... e a gente ia andando e tentando explicar que não podíamos ir, mas a rua estava deserta e não tinha ninguém que, quem sabe, pudesse nos ajudar se ele ficasse sem controle.. É, primeiro grande erro já tinha sido sair do bar com o cara, na falta de outra reação qualquer. E na inércia fomos, até que chegamos na frente do pequeno prédio onde morava o criminoso, e de última hora demos a volta, saímos andando, falando algo que não me lembro mais, tipo que tínhamos que acordar cedo amanhã, mas valeu o convite e fique bem e tchau... e nos livramos do cara, em pânico. Sem acreditar que ele tinha ficado mesmo para trás, andamos o mais rápido que pudemos sem correr.

Ficamos em silêncio por algum tempo, mesmo depois de entrarmos em casa. Parece que finalmente entendemos em qual brincadeira estávamos constantemente nos metendo, há uns anos, naquele exato momento. Como se não bastassem todas as outras tantas situações estupidamente propícias a grandes merdas nas quais já tinham nos metido, aquela fora a gota d'água.

As aulas de violão pararam, as idas àquele bar nunca mais aconteceram e nosso amor, bem, acabou de forma dolorida, mas inevitável, após o fim das aventuras. Entregamos o apartamento, onde depois de meses morando descobri: um pai havia sido morto pelo filho há uns poucos anos. Acho que já sentia isso no ar, sabe? Bem...

Quando não é pra ser, não é. E quando é pra ser, é. Qual outra explicação haveria pra hoje eu ainda estar aqui "ileso" e feliz depois de tudo? E ainda fazendo idiotices, mesmo que menores? Aprendi um limite, voltei um pouco atrás, mas apenas o suficiente pra manter alguma emoção na vida! É o que importa, a diversão, não é verdade? "Eu bebo sim, estou vivendo..."

Segredo #3

Ela abandonou a família para viver sua grande paixão, que eles nunca aceitaram. Ela sempre sonhara em carregar as suas poucas coisas nas costas, e limpar o mundo todo. Acompanhada de quantos cachorros quisesse. Eles a amariam e entenderiam, sempre.

Segredo #2

Ela sempre olhava incomodada para a mão de sua mãe nas coxas dele, e depois de tantos outros. Seus gestos lhe eram incompreensíveis, mas ainda ainda assim ela própria os replicava.

Segredo #1

Era na lavanderia, no subsolo da enorme casa, onde ela se sentia mais imunda... e repugnava-se de ambos.

Passagem

Eterna primavera
onde os mortos dormem e as flores
exalam seu doce perfume